segunda-feira, 4 de abril de 2011

Mozart e Mahler: fé e desalento

MÚSICA CLÁSSICA

Mozart e Mahler: fé e desalento

Composta por um gênio na flor da idade, a Missa em dó menor fascina com sua curiosa síntese de terror metafísico e aparente leveza mundana. Por Clóvis Marques


Mozart passou a adolescência e a primeira juventude compondo dezenas de obras litúrgicas para o arcebispado de Salzburgo, mas depois que se mudou para Viena aos 25, em 1781, sem uma posição oficial na Igreja, criou nos dez anos que lhe restavam apenas três obras vocais sacras: o moteto Ave, verum Corpus, o Réquiem pouco antes de morrer e em 1782-83, logo depois da chegada à capital, esta Missa em dó menor K.427 que ouvimos no fim de semana com a Orquestra e Coro do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Composta por um gênio na flor da idade, a Missa em dó menor fascina com sua curiosa síntese de terror metafísico e aparente leveza mundana, tendo justificadamente ficado conhecida como “a Grande”. Seu frescor também tem a ver com as peripécias biográficas a que se liga na trajetória de Mozart. A composição decorreu de promessa feita pelo casamento com Constance, que interpretou uma das difíceis partes de soprano na criação. Mozart era um homem feliz, que conquistava maior independência, e no entanto se sabe que todas as obras que dedicou a Constance ficaram inacabadas…
É o caso desta Missa, que omite o “Agnus Dei” final e toda a parte do “Credo” que fala da crucificação, da ressurreição, do julgamento e da igreja. Ficava de lado, assim, a dor da brutalidade humana e a ideia de julgamento institucionalizado numa religião, ao mesmo tempo ganhando relevo o relato da encarnação, como se Mozart visse aí uma consumação. Nesse momento do “Et incarnatus est”, ele se expressa numa ária para soprano com acompanhamento de flauta, oboé e fagote em floreado estilo operístico italiano – que também se manifesta em outros momentos de contraste com a severidade contrapontística dos episódios de contrição, como o impressionante “Qui tollis” para o coro.
É mais que uma manifestação de sincretismo estilístico – considerando-se que esta Missa dá vazão a uma recém-conquistada intimidade com a música de Bach, refletida no tratamento de seivosa complexidade canônica das fugas e polifonias do “Gloria” e do “Credo”. É também um símbolo: nessa caprichosa arte que aqui e ali pode parecer frívola, há uma nudez e uma exposição exaltada da voz que falam de anseio do eterno no eco humano.
Em sua alternância de assombro diante do infinito e flexível sentimento de religamento, a Missa em dó menor foi regida no Teatro Municipal pelo promissor Marcelo Lehninger, atualmente maestro assistente na Sinfônica de Boston e na Filarmônica de Minas Gerais. Preciso nos gestos e atento aos equilíbrios, ele moldou com elasticidade as massas corais (prejudicadas apenas por uma certa espessura dos sopranos no agudo) e extraiu empenho e arte das cordas nem sempre finas da orquestra. Nas partes solistas femininas, que têm primazia flagrante sobre as masculinas (defendidas com correção pelo tenor Marcos Paulo e o baixo Maurício Luz), tivemos o soprano bem timbrado, extenso mas algo gélido da coreana Shi Young Jung e o mezzo capitoso e cultivado da brasileira Luisa Francesconi, irresistível no “Laudamus te”.
* * *
Canção da terra de Mahler é dessas obras de enorme reputação, com seguidores fiéis entre os especialistas e o público mais sensível à arte do bruxo de Viena, mas que me deixam perplexo. Composta num momento em que o compositor sentia os famosos “três golpes” que o acometeram perto do fim prematuro da vida (morte da filha mais velha, separação da mulher e demissão da Ópera de Viena), ela emprega poemas chineses adaptados para traçar um quadro de relação com a natureza, sombria ou exaltada (dubitativamente), num homem mergulhado na própria dor. São seis movimentos, confiados alternadamente a um tenor e um barítono (ou contralto), falando em estilo poético e alusivo de temas como o desencanto, a vontade de esperar, o desespero, a finitude, a incomunicação. A linguagem musical é a que se conhece em Mahler: alternância de explosões das massas orquestrais e texturas camerísticas, tonalidades resvalando para a indefinição ou mesmo, no caso, o pentatônico (remetendo ao universo oriental), calma quase prostrada (ou de uma prostração parecendo sem remissão) e euforia quase infantil (ou se lembrando da infância)…
Strong stuff”, diriam os americanos. Como, aliás, é corrente em Mahler, nunca um compositor voltado eminentemente para a mensagem musical em si e os espaços internos que ela pode abrir em nós, mas preocupado em “pôr o mundo numa sinfonia” – o que, em sua época, significava traduzir na linguagem dos sons organizados uma angústia quase sempre desesperançada, às vezes querendo se redimir na nostalgia dos passados (da sociedade europeia, da infância do compositor), mas não raro dando a impressão de complacência com o próprio sofrimento. Não há superação em Mahler, apenas autocomiseração.
Canção da terra teve sexta-feira, no mesmo Teatro Municipal do Rio, uma execução pela orquestra Petrobras Sinfônica que não se afastou muito do solo. O maestro Carlos Moreno, senhor da partitura _ que gravou dois anos atrás em versão de câmara com o Algol Ensemble, o tenor Fernando Portari e o barítono Rodrigo Esteves _ foi chamado a substituir Isaac Karabtchevsky, indisposto. Provavelmente não teve tempo ou condições de infundir densidade e refinamento ao conjunto – em música que, mais que qualquer outra, requer aura, imaginação, capacidade de surpreender. Os violinos, muito expostos o tempo todo por Mahler, nada tinham de vienenses na textura ou no lustro, as madeiras chegavam a hesitar. O tenor americano Jeffrey Dowd tem um instrumento lírico-heróico que se destacava quando necessário das grandes massas instrumentais do primeiro movimento, por exemplo, mas sem particular dramaticidade ou pungência. O esplêndido barítono que é Leonardo Neiva deu conta do recado, vocalmente, mas parecia estar lendo a partitura. O longo movimento final de “Adeus” a ele confiado pareceu assim tanto mais interminável.

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